Peter Singer, definitivamente, é um dos autores de maior envergadura teórica no campo da Ética e, especialmente, da Ética Aplicada. E não há como dissociar sua produção intelectual de temas absolutamente caros aos debates éticos que vivemos em nosso dia a dia. “Ética Prática”, obra de relevância e referência no campo da Ética Aplicada, é uma dessas obras que guiam um debate filosófico com propriedade, ainda mais quando lidamos com temas espinhosos socialmente como aborto, igualdade racial e de gênero, direito animal e eutanásia, por exemplo.Não falta polêmica ao livro, ainda bem.

Singer buscou mapear argumentos pró e contra a dilemas morais envolvendo a prática do aborto (em suas mais variadas situações), ao uso (e abuso) dos animais tratando a discussão de diversos pontos de vista para afunilar o debate em torno de uma discussão comparativa entre níveis de senciência e consciência dos seres animais humanos e não-humanos e porque determinadas práticas são aceitáveis para com determinadas espécies e para outras não. Toda essa discussão é sempre reportada aos principais debates da Ética, discussão especialmente conduzida em torno dos autores utilitaristas como John Stuart Mill, por exemplo. E ao trazer Mill (entre outros autores), autor de “On Liberty”, o debate sobre a liberdade guia a reflexão ética sobre cada um dos temas selecionados por Singer. Reforço, entretanto, que Singer de forma apropriada identifica as limitações das abordagens utilitaristas (as de Mill e de outros autores) para assim avançar na sua própria reflexão ética.

peter singer
Peter Singer

Singer, neste sentido, costura sua argumentação de maneira encadeada fazendo uso de paralelos para imprimir uma reflexão sobre práticas que não são isoladas. Por exemplo, a pessoa se alimenta de carne de vitela, mas é contra o aborto. Há incoerência entre essas duas convicções? Ou então apoiar um determinado tipo de prática de eutanásia e não outro. Cada dilema moral que é eticamente investigado por Singer é disposto numa espécie de mosaico que reforça que os dilemas morais que vivenciamos em nossa contemporaneidade são absolutamente interdependentes. Os exemplos dessa perspectiva são trazidos a todo momento no livro e nos obriga a ler cada capítulo com atenção, dada a necessidade de buscar o processo argumentativo que Peter Singer inflige ao leitor e a leitora de sua obra. Por exemplo, ao discorrer sobre igualdade racial e de gênero Peter Singer produz sua avaliação ética amparada na história contemporânea, especialmente para fazer o leitor e leitora visualizar de maneira didática as experiências que são descritas e analisadas. O capítulo sobre a desobediência civil, neste caso, é estimulante para avaliar as condições morais e como as mesmas são destrinchadas pelo autor para apontar coerências e incoerências na conduta do indivíduo e da sociedade.

Poderia desenvolver essa resenha sobre as especialidades do campo bioético que Peter Singer desenvolve intelectualmente há décadas com extrema propriedade como parcialmente já discorridas nesse post, ainda que permeadas de polêmicas, mas vou me deter especificamente nas contribuições tardias (podemos assim chamar) de Singer ao clássico livro “Ética Prática”. E quais seriam essas “contribuições tardias”?

Especificamente sobre o meio ambiente.

Embora o Direito Animal seja debatido no livro com argumentação sólida, a mesma habilidade argumentativa não chega até temas como mudanças climáticas ou conservação da biodiversidade. Nos capítulos que Singer dedica aos temas há, na verdade, uma descrição de processos econômicos e sociais que impactam diretamente sobre o meio ambiente. O aumento de X graus na média da temperatura da Terra impactará Y nos ecossistemas e na qualidade de vida humana no planeta, custo esse pago em sua maior parte por países mais pobres e, de forma geral, pelos mais pobres seja em países pobres, em desenvolvimento ou desenvolvido. Singer ampara sua argumentação ética em torno de uma perspectiva do indivíduo e seu consumo como o eixo de avaliação ética dos impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente. Ainda que essa abordagem basicamente amparada numa perspectiva de “pegada ecológica” seja positiva, Singer a reduziu muito a uma descrição desse comportamento sem, contudo, esmiúçar dilemas morais na mesma intensidade que fez com outros problemas de natureza ética como o fez ao comentar sobre a eutanásia (consentida ou não). Se sobram exemplos para comentar os dilemas morais envolvendo a eutanásia e outros temas ligados a saúde pública, faltam exemplos devidamente discorridos e avaliados eticamente sobre essa categoria “meio ambiente”. E, na minha avaliação como leitor, manifesta-se esse “gap” até mesmo quando Singer busca dialogar com um eticista ambiental referenciado no campo da Ética Ambiental, Dale Jamieson.

No Prefácio a essa reedição de “Ética Prática” lançada no Brasil o autor reconhece que a introdução de uma ética ambiental ao livro foi posterior ao desenho original da obra. E o debate foi embrionário no livro, o que não significa que a obra não tenha valor para reflexão sobre ética aplicada ou, para sermos mais específicos, ao campo da Bioética Ambiental. É uma leitura obrigatória que refina a percepção sobre os inúmeros dilemas éticos que perpassam nossa época.

Ética Prática de Peter Singer, definitivamente, é leitura obrigatória para todos aqueles e todas aquelas que buscam uma reflexão mais apurada dos dilemas morais que nos cercam nessa época de turbulências que vivenciamos no dia a dia. O livro pode ser adquirido clicando aqui. Abaixo um vídeo legendado com o próprio Peter Singer palestrando no TED.