Ao comentar sobre o que fundamenta a Bioética em sua dimensão clínica, Beauchamp e Childress produziram um texto, “Principles of biomedical ethics”, que buscou mapear o que seriam os quatro princípios para a tomada de decisão moral na prática clínica. Os quatro princípios, a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça, são o ponto de partida para fundamentar a este ensaio. Fundamentos que serão trabalhados, especialmente, na aparente contradição que possa resultar da aplicação de princípios como autonomia e não-maleficência, por exemplo, para analisar o caso do aborto entendido a partir de uma perspectiva de saúde pública (como controle de natalidade) evitando, desta forma, a “ingerência” ou mesmo a armadilha conceitual de amarrar o debate bioético a “moralidades competitivas” (como observa Greene, 2018) oriundas de convenções religiosas que possam negar, a priori, a validação do debate bioético em torno do próprio conceito de controle de natalidade (entre outros métodos).

Dada a distinção entre moral e ética, podemos avançar o alcance do debate sobre aborto na medida em que tomamos a limitação da moral ao que seja considerado como valores consolidados por usos e costumes sociais que podem ser compartilhados em maior ou menor medida por cada indivíduo a ela inserido e os arranjos coletivos que pertença. Dado que Ética será tomada como um juízo de valores que orienta a reflexão de “Por que?” algo ocorre e suas implicações morais, o entendimento que tomamos, portanto, dependerá sumariamente da execução da Ética para refletir a tomada de decisão individual que leva a mulher a decidir pela interrupção da gravidez. O dilema ético, portanto, é individual, mas com reflexos morais. Neste sentido, essa análise alinha-se a perspectiva de que o exercício bioético é um exercício ético de escolha, o que demanda, invariavelmente, o pressuposto da liberdade de escolha e liberdade de ação. A autonomia, desta forma, para se pensar o controle de natalidade é prioritária em relação a outros princípios para se analisar qualquer dilema moral que possa resultar da opção pela escolha de interrupção da gravidez. Toma-se, é importante reforçar, que a autonomia existe numa escala dinâmica de escolhas que não estão isoladas entre si, o que leva em consideração o processo que envolve a gestação (por etapas da gravidez já devidamente documentadas pelas ciências biomédicas).

O exercício da autonomia pela mulher (que é quem é agente moral da decisão) é pressuposto em tal questão por conta da vinculação entre liberdade e razão, por isso agente consciente de seus atos. A interferência externa (que pode ser pelo Estado ou por uma instituição religiosa) é sempre refratária a essa autonomia e ao exercício da liberdade bem como da razão, ainda que apele para outro princípio bioético que é a não-maleficência, contudo, a não-maleficência no caso não prioriza o agente moral da decisão que é a mulher na escala prioritária de análise, mas o feto enquanto potencial. A mulher, como ser humano consciente e capaz de tomar decisões racionais fica relegada ao segundo plano, na abordagem contrária a seu direito d escolha, ao ser interposta sua autonomia, liberdade e razão a um potencial ser que não existe de forma consciente. A definição de quando o ser humano passa a existir enquanto ser senciente é fundamental, neste sentido, para debater os limites da autonomia e nesse caso a estruturação do sistema nervoso central é um parâmetro para a legalidade que pautará os efeitos de uma decisão individual (da mulher) ou colegiada (por profissionais da saúde) de interrupção da gravidez.

Um ponto de partida possível é a visualização da vida (e aqui pensamos em seu início) a partir de duas premissas: a primeira é relativa a vida humana num sentido biológico apenas, já a outra premissa toma a dimensão biológica, mas vai além na medida em que incorpora as dimensão psicológicas e sociais. Ao considerar que o ser humano é um processo e que esse processo é impermanente (como observam Nagarjuna, filósofo indiano da antiguidade clássica budista) não há consistência racional ao se apelar a um potencial como razão para impedir a autonomia da decisão de um decisor moral racional e livre ao supor a incompatibilidade com outro princípio que é a não-maleficência. A escolha pela interrupção, desta forma, ao mesmo tempo que preserva a autonomia dentro de seus parâmetros de liberdade e razão também conserva o princípio (aqui subordinado) da não maleficência ao tomar como ponto de partida a ciência para indicar os critérios para o exercício da escolha, como a definição legal (a posteriori à definição ética) de a partir de qual período a interrupção da gravidez ocorreria sem danos a um feto não apenas como potencial, mas como ser biologicamente senciente.

Fizemos um debate no grupo de estudos em Bioética vinculado ao Observatório de Impactos Ambientais e de Saúde (OIAS) que pode ser assistido pelo canal do OIAS no Youtube.